segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Discípulos e Discípulas para a Missão





Quais as conseqüências das decisões tomadas na Conferência de Aparecida para a Igreja na América Latina e Caribe?

Começamos a refletir nestas páginas nos temas dominantes da 5ª Conferência do Episcopado Latino-Americano e Caribenho, mais conhecida como Aparecida. Assim a chamaremos daqui para frente. Queremos ajudar os cristãos a entrar no espírito desta grande Assembléia e não limitar-nos ao que ficou impresso no Documento Final. Algumas vezes mencionaremos o texto como foi aprovado; outras, procuraremos iluminá-lo com reflexão própria ou citações de pessoas que vivem em diferentes contextos.
O discipulado na históriaNa Antiguidade não existiam colégios ou universidades, nem professores e alunos. Para o entendimento da Filosofia e da Religião, existiam os mestres e seus discípulos. Pensemos nas escolas filosóficas do mundo helenista: havia aquelas que dependiam dos mestres, como os socráticos e platônicos dependiam de Sócrates e Platão. Eles não eram professores, mas, mestres. Não era só o saber pelo saber, os mestres transmitiam um jeito de viver e agir que tinham um grande influxo em seus discípulos, que nunca eram chamados de alunos. Imitavam seu mestre para chegar à gnose, ao conhecimento, que certamente exigia comportamentos de vida idênticos aos de quem ensinava.Assim, nas religiões milenares do Oriente, existiam as escolas de espiritualidade dirigidas por homens iluminados, que se reuniam ao redor de outras pessoas que procuravam a sabedoria como iluminação de toda a sua existência. Os meios pedagógicos não eram os livros, mas, sim a atenção mental e as posturas ou atitudes corporais para chegar à plena iluminação e ao domínio total de si mesmo. Imitavam o mestre em todas as formas de vida.Mais próximo do Cristianismo encontramos o Judaísmo, com suas diversas escolas rabínicas, segundo o enfoque que davam à Lei. Rabi era o mestre, e os que seguiam sua interpretação eram chamados de discípulos. Os rabinos ou doutores da Lei reuniam em torno de si muitos discípulos, aos quais transmitiam a sua doutrina. Esses discípulos, por seu turno, podiam tornar-se rabinos e continuar a tradição que tinham recebido. Os profetas formavam também escolas sem se darem conta, pois havia pessoas que viviam seus ensinamentos e interpretavam as escrituras. Lembremos os fariseus, os essênios e outros movimentos contemporâneos de Jesus. O último profeta do Antigo Testamento foi João Batista. Homem que se retirara no deserto, também ele se torna mestre de muitos discípulos, alguns dos quais serão, depois, discípulos de Jesus. A pregação e o estilo de vida de João irão entusiasmar homens e mulheres do seu tempo.
Discipulado no EvangelhoO termo discípulo é repetido cerca de 250 vezes no Novo Testamento. Em grande parte, refere-se aos discípulos de Jesus. Ele acolheu no seu “movimento” e vinculou no seu Reino todos os que quiseram escutá-lo e segui-lo, sem se importar com normas especiais de pureza e de conhecimento, como faziam outros grupos do seu tempo, como os essênios e fariseus. Jesus logo encontrou pobres que foram os primeiros destinatários da sua pregação. Para eles viveu e por eles quis iniciar o seu “movimento”. No seu caminhar Jesus encontrou também os simpatizantes. Além dos pobres, Jesus tinha amigos, homens e mulheres, pertencentes ao que podemos chamar de classe média da época, que continuavam vivendo nas casas e campos por onde ele passava anunciando o Reino e curando os doentes. Ao mesmo tempo que tinha “amigos das casas”, Jesus tinha discípulos ou seguidores, que deixavam casas e posses, para caminhar com Ele, anunciando e pregando a chegada do Reino de Deus. Eram seguidores em sentido estrito, pessoas que assumiam um tipo de itinerância messiânica, caminhando pelos povoados e aldeias da Galiléia, proclamando e acelerando a chegada do Reino. Jesus caminhava assim, rodeado de colaboradores, homens e mulheres, que assumiam e desenvolviam o seu movimento, numa perspectiva de seguimento e de entrega total ao Reino. Com freqüência Jesus chama a segui-lo, ou seja, convoca pessoas além dos apóstolos, e podemos pensar que a convocação se tornava um requisito, para que alguém fosse citado como um dos seus discípulos. Ele pedia uma relação pessoal mais completa do que a dos rabinos.
Jesus e os discípulosOs discípulos deviam estar dispostos a abandonar pai e mãe, filho e filha, a tomar a sua cruz e a dar a vida no seguimento de Jesus (Mt 10,37ss; Lc 14,26ss). Como o seu Mestre, os discípulos deveriam abandonar suas casas, ficando sem ter “onde repousar a cabeça”. Não deviam permanecer nem mesmo para cuidar de um velho pai ou para resolver assuntos domésticos (Mt 8,19ss; Lc 9,57ss). Além destas diferenças, existem outras, se comparadas com outros movimentos religiosos: não podiam ter esperança de obter promoção, pois, deviam ser discípulos durante toda a vida. Os discípulos de Jesus não se limitavam a transmitir o que o Mestre havia dito, palavra por palavra, mas a ser “testemunhas” da vida e dos fatos que Jesus realizou, anunciar o Reino e fazer que esta realidade se tornasse possível. Os discípulos, transmitindo a Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus, são mais testemunhas do que veículos das tradições e leis verbais. Este Mestre vai dar a vida pelos seus discípulos e vai exigir que eles também dêem a vida pela causa do Reino. Em nenhuma religião vai existir esta comunhão entre Mestre e discípulos, de dar a vida reciprocamente e de contínua presença até o fim dos tempos. “Os que se sentiram atraídos pela sabedoria das suas palavras, pela bondade do seu tratamento e pelo poder dos seus milagres, pelo assombro inusitado que despertava sua pessoa chegaram a ser discípulos de Jesus” (Aparecida, n° 21).Podemos aplicar também aos discípulos o que Marcos fala dos Apóstolos: “Ele fez Doze, que chamou apóstolos, para estarem com Ele e para os enviar...” (3,14). Bento XVI explica este texto: “Eles devem estar com Ele para O conhecerem; para alcançarem aquele conhecimento que a “gente” não podia captar, que apenas O via de fora e O tinha por um profeta, por um grande da história das religiões, mas que não podia entender a Sua unicidade. Os Doze devem estar com Ele, para que conheçam Jesus na sua unidade com o Pai e assim possam ser testemunhas do Seu mistério... Eles devem chegar do mais exterior, até a íntima comunhão com Jesus, poder-se-ia dizer. Mas, ao mesmo tempo, eles estão lá, para serem enviados por Jesus, precisamente “apóstolos”, para levar a Sua mensagem ao mundo: em primeiro lugar às ovelhas perdidas da casa de Israel, e depois “até os confins da terra”. Estar com Jesus e ser enviado parece, à primeira vista, que são coisas excludentes, no entanto estão claramente interligadas. Eles devem aprender a estar de tal modo com Ele, que estejam com Ele, mesmo quando forem para os confins do mundo. Estar com Ele leva em si como tal a dinâmica da Missão, porque todo ser de Jesus é já Missão.” (Bento XVI, Jesus de Nazaré. Editora Planeta: São Paulo, 2007, p. 155 e 156).Este binômio discípulo-missionário está muito presente na espiritualidade cristã, sobretudo nos fundadores de Congregações Missionárias. Encontramos expressões como estas: “Primeiro Deus, depois os homens”, “Enche o teu coração e depois reparte”; “Contempla o sol, para depois poder iluminar.” O fundador dos missionários da Consolata, o Bem-Aventurado José Allamano, repetia com freqüência aos discípulos e discípulas: “Antes santos, depois missionários.” No fundo é a mesma expressão utilizada por João Paulo II na Encíclica A Missão do Redentor: “O verdadeiro missionário é o santo.” E Bento XVI fala no seu livro “que todo ser de Jesus é já Missão”. Poderíamos dizer que na tradição bíblica e espiritual primeiro temos de cuidar o “ser”, depois do “fazer”. Ser discípulos, para ser enviados. Ser missionários e fazer Missão. Todas estas expressões são equivalentes a dizer que o cristão deve ser discípulo, antes de empreender a Missão. Deve estar próximo de Jesus, para conhecer seu projeto; fazê-lo próprio, para depois transmiti-lo. “Chamou-os, para estar com Ele e depois enviá-los a pregar.”A Conferência de Aparecida, nas suas linhas gerais, para a Igreja que está na América Latina e no Caribe, quer que todos os cristãos sejam discípulos-missionários de Jesus Cristo. O Batismo é a fonte desta tarefa e a finalidade é para que todos tenham vida em Jesus Cristo. “A grande tarefa de custodiar e alimentar a fé do povo de Deus, e lembrar a todos os fiéis deste continente que, em virtude do seu Batismo, são chamados a ser discípulos e missionários de Jesus Cristo.”
Discípulos na AméricaO encontro pessoal e comunitário com Jesus Cristo suscita discípulos e missionários. Não depende tanto de grandes programas e estruturas, mas de homens e mulheres que se tornem protagonistas de vida nova para uma América Latina que querem reconhecer com a luz e a força do Espírito. O encontro com Jesus na sua intensidade e radicalidade é o mesmo em todas as pessoas. Mas as circunstâncias religiosas, sociais e psicológicas são diferentes nas diversas culturas. A pessoa está imersa num mundo que pode condicionar o seu encontro e dar certas características próprias dessas culturas. Não é igual o encontro do rico e do pobre, do índio e do escravo, do homem e da mulher. Existem mediações para esse encontro com Cristo, dependendo dos ambientes, das culturas e de outros elementos. Certas circunstâncias, em vez de produzir um encontro, podem ter um efeito contrário, ou seja, um desencontro.Aparecida indica-nos pistas e meios, para favorecer um encontro “típico” do povo latino-americano com a pessoa de Jesus Cristo; antes de tudo, os rostos de todas aquelas pessoas que nos lembram o rosto sofredor de Jesus, e por meio das quais podemos ter um encontro com o rosto de Cristo, que nos lançará à Missão de consolar, promover, libertar.A Conferência diz-nos: “Isto nos deveria levar a contemplar os rostos daqueles que sofrem. Entre eles estão as comunidades indígenas e afro-descendentes, que em muitas ocasiões não são tratadas com dignidade e igualdade de condições; muitas mulheres que são excluídas, em razão de seu sexo, raça ou situação socioeconômica; jovens que recebem uma educação de baixa qualidade e não têm oportunidades de progredir nos seus estudos nem de entrar no mercado do trabalho para se desenvolver e constituir uma família; muitos pobres, desempregados, migrantes, sem-teto, camponeses sem-terra, que buscam sobreviver na economia informal; meninos e meninas vítimas da prostituição infantil, unida muitas vezes ao turismo sexual; também as crianças vítimas do aborto. Milhões de pessoas e famílias vivem na miséria e até passam fome. Preocupam-nos também os que dependem da droga, as pessoas com deficiência, os que vivem com o vírus do HIV e que sofrem a solidão e se vêem excluídos da convivência social e familiar. Não esqueçamos os seqüestrados e os que são vítimas da violência, do terrorismo, dos conflitos armados e da insegurança cidadã. Também os idosos, que, além de se sentirem excluídos do sistema produtivo, se vêem muitas vezes rejeitados pelas suas famílias como pessoas incômodas e inúteis. Dói-nos, finalmente, a situação desumana em que vive a grande maioria dos presos, que também precisam da nossa presença solidária e da nossa ajuda fraterna. Uma globalização sem solidariedade afeta negativamente os setores mais pobres. Já não se trata simplesmente do fenômeno da exploração e opressão, mas sim de algo novo: a exclusão social. Com ela fica afetada em sua mesma raiz a pertença à sociedade na qual se vive, pois já não se está nela abaixo, na periferia ou sem poder, mas se está completamente fora. Os excluídos não são somente “explorados”, mas “restantes” e “descartáveis” (Aparecida, n° 65).Perante esta situação que vive o nosso continente, não podemos ficar indiferentes, pois somos os discípulos e seguidores daquele que é o “Caminho a Verdade e a Vida”. Em todas as situações enumeradas anteriormente, temos de nos perguntar: como podemos ser discípulos d’Aquele que veio dar a vida por suas ovelhas? Como não viver na compaixão, na solidariedade e na libertação de todas essas pessoas que são a imagem viva de Cristo? O que faria o Mestre nestas situações? De todas estas perguntas, naturalmente nasce a Missão, porque da contemplação do rosto de Cristo nos rostos dos irmãos e irmãs vai nascer um envio, para que o cristão não fique de braços cruzados. “A resposta ao seu chamado exige entrar na dinâmica do Bom Samaritano (cf. Lc 10,29-37), que nos dá o imperativo de fazer-nos próximos, especialmente com quem sofre, e gera uma sociedade sem excluídos, seguindo a prática de Jesus que come com os publicanos e pecadores (cf. Lc 5,29-32), que acolhe os pequenos e as crianças (cf. Mc 10,13-16), que cura os leprosos (cf. Mc 1,40-45), que perdoa e liberta a mulher pecadora (cf. Lc 7,36-49; Jo 8,1-11), que fala com a Samaritana (cf. Jo 4,1-26)” (Aparecida, n° 150).O discípulo de Jesus deve assumir a centralidade do Mandamento do Amor, se quiser configurar-se com o seu Senhor. É um mandamento d’Ele e novo. E não existem outras leis e normas que possam turvar este Mandamento, porque se ele for turvado pelas leis humanas, a Missão que dele nascerá já não será a de Jesus, mas, a Missão de uma instituição. Nem todo missionário é discípulo e nem todo discípulo é missionário. A América Latina, pelas suas características próprias, está pedindo um discipulado com certas especificidades do homem e da mulher latino-americanos:
– discípulas e discípulos que nasceram da Missão;– discípulas e discípulos pobres que contemplem Jesus pobre nos rostos de tantos pobres;– discípulos e discípulas chamados, para anunciar a Boa-Notícia aos pobres;– discípulos e discípulas cheios de esperança, que vivem o Evangelho com a alegria dos pobres;– discípulos e discípulas, para dar vida e abrir tantos horizontes ao povo pobre, sem condenações, sem anátemas;– discípulos e discípulas que gritam com suas vidas que Jesus é o Senhor das suas vidas e das suas histórias;– discípulos e discípulas chamados à Missão universal “ad gentes”, que testemunhem o seu amor fora das suas próprias fronteiras.
Pe. Ramón Cazallas SerranoMissionário da ConsolataIn: Revista Missões, setembro de 2007, p. 15 a 18.